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reitera e refaz

por Gabriel Cruz Lima
imagem de georgia ayrosa para texto de gabriel cruz lima. folhetim na ordem do dia, capítulo 3

Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, não tem nenhuma premiação expressiva na última década. Entretanto, a torcida permanece.


Disse duas vezes, passo à tarde depois da aula de ioga, aproveitar que é contrafluxo do trânsito. De tarde, porque ela gosta do meu bolo de mandioca, eu entendi. De café da tarde, pensei, porque café da tarde tem menos tensão que um jantar, que é menos casual que um almoço, que é menos íntimo que um café da manhã na cama. 

Quando, ela perguntou. Sexta-feira seria melhor, calculei.

Perguntou se eu estaria ocupado. Disse sim, mas posso desmarcar meus compromissos. Fico puto por antecipação, porque sei que ela vai chegar no meio do cochilo. 

Claro, avisaria antes para prevenir. Ou ainda, para prevenir surpresas, como ela disse. Para prevenir outras pessoas de estarem contigo, como eu li. Para prevenir de algum eventual mau-olhado, acendi um incenso de canela verde. Dizem que deixa mais acordado para eventuais brigas.

Reiterou se não incomodaria mesmo, de repente atrapalharia a rotina, a regularidade da escrita. Magina, eu respondo. 

Dessa forma, escolho os rastros do caminho, a taça de vinho com marca de batom, umas latas de cerveja espalhadas aqui e ali, o disco da Maria Bethânia com o encarte aberto, o livro do Ricardo Piglia e suas formas breves, dorso virado para o tampo, como quem relembra com o vidro sobre as discussões salivares acerca das realidades cifradas entre camadas e camadas de texto. Giro em torno da casa brincando de espalhar sujeira. Cada caco cumpre a função de demonstrar como ando, espalho até bitucas de um cigarro que eu não fumo para que ela note a presença de alguém na noite anterior. Essa é a listagem de coisas que ela pensa e que eu penso que um escritor faz para escrever, mistura de sujeira e flerte. 

Coloco um pãozinho na chapa com manteiga enquanto o relógio corre a favor do reencontro. 

Três meses por segundo de distância e antecipo o barulho do trinco com os olhos. Seco as mãos no avental para oferecer o cumprimento à estranha ou dou a bochecha para fingir que vou bem? Porque senti saudade, mesmo ontem, senti muita saudade. E a gente se olharia por quatro anos e meio, do batente da porta, e ficaria ali sem saber se dizemos oi, como vai, como estão as coisas, ou se ela só vai dizer nada e passar e pegar as coisas, sem mais delongas, sem mais choros, rasgando o tecido onírico.

Coloco um disco do Secos e Molhados e acendo uma baga, porque ela odeia essa vibe que eu passo de misticismo, esperança de que, com isso, ela não viria. Murcho e adormeço profundamente.

Fico sentido com a campainha muda. Ninguém incomoda a soneca. Deixo o charles bronson apagado na boca de uma lata enquanto flutuo sem respirar pelo espaço. Ao não entrar com dois toques e uma buzinadinha, significa uma diferença: estamos distantes. Lá vou eu de mão molhada e tudo abrir a porta, grave que em algum ponto da nossa relação aquela falta de ding dong reitera a distância. Reitera e refaz. Ou só reitera.

Minha mão escorrega e não consegue fixar na maçaneta, as coisas andam insólitas com a antecipação da presença. Meu neurologista disse que não posso ter muitos pensamentos nervosos. 

Ela confunde as minhas percepções e nem se preocupa com a qualidade do meu sono, se ainda estou dormindo, ou se permaneço acordado. Apesar de não ter tocado a campainha aos modos da casa, Lídia, ou algo próximo daquilo, entrou e tacou um beijo rápido na boca, de muy amigos, nem deu tempo de nada, foi com um tenho sede espalhado pela cozinha e lavando, secando, usando o copo d’água. Gut gut gut e eu reparo na moça de costas parecida e estranha.

Não me surpreende o cabelo novo. Os sonhos existem como antecipações de medos também. Que era óbvio, era, mas cortar e pintar o cabelo a essa altura do campeonato força uma independência: deixou um chinelo, duas camisetas, um pijama e quarenta e dois livros. Ela não era ainda a outra dos cabelos mais curtos e se parecia mais com a que eu esperava na vigília. Ainda me pertencia aquela recordação e dessa forma também o visual. Fui traído pelos sonhos e, neles mesmo, flagrado pela culpa. Reitera e refaz, é isso.

Você está mais gorda, pensei em dizer. Se disse algo foi assim: você está diferente.

Mudei minha rotina, voltei para o ioga, nova turma, novas pessoas, sabe como é. Estou vivendo um sonho.

Estendo a cadeira naquelas de legal-legal. Muito bacana, muito bacana, ainda bem que você está cuidando da saúde, importante nesse momento que a gente está vivendo, formas de meditar nos conectam conosco, cada um tem a sua. Dormir na cadeira fumando, pode ser e não acordar jamais. Eu já te disse que tenho sonhado coisas muito vívidas, presságios e premonições.

E você? Como você está?

Vou bem, vou bem. Coço o cotovelo e abaixo a cabeça, modus operandi encabulado, olhando para o piso translúcido de cimento, que não tenho certeza se era o meu, fingindo a esperança de que ela note minha tristeza espalhada em latas. Ando muito piegas com a bebida e muito determinado que ela note o plano.

Lídia mexe no celular desligado, sentada como quem espera não sei o quê, sem olhar meu rosto mais magro e tão tão triste.

Tiro o pãozinho já mofado da chapa, o suco de laranja com sabor de tamarindo sem-adição de açúcares, e o bolo de mandioca do forno. Fiz pra você, digo.

De novo não, José, ela diz. Sinto que a voz vacila. É o suficiente. Melhor sonhar com a verdade que amar a mentira.

É de mandioca, você não quer? E o beijo de agora há pouco? Eu ainda lembro dos seus sabores favoritos, apesar de tudo. 

Me sento ao lado dela na mesa. Tiro um pedaço de bolo da forma e, com o garfo, finjo que é um aviãozinho. No ar, fico duvidando se a pista de pouso estaria aberta, se ela aceitaria a volta da intimidade. 

Ó não, fechado para balanço, diz a boca. Os lábios guardados hangar a dentro e eu com a colher feito tonto, com o dedo melindrado no ar, do dengo negado.

Com o trem de pouso já aberto, prestes a encostar na minha língua, ela diz, estou só brincando, quero seu bolo sim.

Mesmo sem aceitar a colherada, pega o último pote limpo do fundo de algum armário, ainda é meu esse armário, e se serve. Mas que cacetes você está fazendo aqui, a essa hora, achei que nosso último término fosse o último. Ela reitera e refaz, todos os términos são o último, José. 

Sem frases de efeito, por favor. Qual é a sua?

Vi seu texto na internet semana passada e fiquei preocupada com você. Mas gostei muito, meu medo é que os outros não entendam seu lance entre as realidades.

Você ainda pensa que eu quero salvar o mundo depois do que você leu? Acredito que fui super cuidadoso com o retrato que eu fiz, mas você sabe, às vezes, no afã de dizer muita coisa, a gente acaba não dizendo nada, ou ainda ludibriando quem acredita com fidelidade em tudo.

Tenho certeza que sim. Achei bem visceral a descrição da relação entre as pessoas, como é vagamente baseado nas relações dos paulistanos de classe média. Mas eu gostei que pode ofender um monte de gente.

Fico feliz que ela tenha reconhecido o meu talento. Mas também irritado. Como antes e sempre. 

Lídia tinha essa característica de afastar aproximando. Não era ironia, a defesa do meu texto significava para ela um processo de valoração estética. Ao aceitar que se tratava de uma espécie de crítica às relações senhoriais entre mulheres, ela se colocava de fora da questão, como se ela também não estivesse naquele mesmo Brasil que anunciava o horizonte de Mourão. Provoco:

Que bom que você gostou. Não sei se você notou que a fisionomia de uma delas é igual a sua, tem até o jeito.

Fiquei feliz como você me distorceu. Cada um fala que sente saudade de uma forma.

E aperta a minha bochecha, docinho, mulher dos meus sonhos. Meu rosto pega fogo, aquela labareda ao contrário, acesa por dentro da raiva de um menino chorão. Não tenho forças para a cólera depois de longuíssimos três meses e uma soneca. Comemos o bolo, o pãozinho, tomamos o suco, pergunto como anda o trabalho na galeria de arte, se está ou não vendendo bem, se ela tem comprado muitas falsificações e coisas raras. Ela ri com o farelo de pão na boca e comenta dessa nova artista, uma senhora talvez, não se sabe o nome ainda, neta de uma amiga, mas que pintou uma tela verde do tamanho de Guernica, mesma medida e tudo, e que representa todos os sentimentos mais ininteligíveis que a gente jamais conseguiu exprimir nesses anos. É clássico, a amiga dizia. Penso em propor um documentário, acho importante o registro de algo assim, quem sabe, mas ainda não reatamos tão profundamente para esse nível de proximidade. Quase me arrependo de ter visto Soliane no dia anterior. 

E vamos ao vinho, penso. Cuida da louça enquanto tomo banho, eu solto já tirando a cueca, a essa altura, minha pose de largado não me serve de flerte. Preciso me restabelecer e restabelecê-la. 

Faço graça com a toalha enrolada no torso, ameaço aquele cai não cai pra ver se ela gosta. Pela cara de poucos amigos, me troco como se colocasse uma gravata: algum nó na garganta, um frio terrível. Ela descobriu.

Se coloco minha mão na dela, ela tira. Se tento um beijo, afasta. É irremediável. Apesar dos planos, nunca é legal a tentativa de reconquistá-la assim dessa forma, expondo ao que o abandono me levou. Ainda mais se envolve terceiros. Mas vale lembrar que, se o desejo não conhece moral, o ciúme causado é uma arma para reaver o nosso.

Se você estiver brava porque tem umas latas espalhadas, pode parar com isso. Você é a mulher dos meus sonhos, ainda.

Você nem arruma a casa para disfarçar. Parece que você só dorme o dia todo.

Você não tem esse direito. Você que sumiu. E vai saber o que você anda fazendo.

Não, calma aí. Não é cobrança, mas isso me preocupa. Quinta-feira bebendo cerveja. Vinho pelo visto também. Fico me questionando se alguém já foi pego com uma marca bucal numa taça de verdade, ou se ela, ou qualquer um que fosse, perceberia a armação. 

Você não tem esse direito. Reitero e refaço: você sumiu sem motivo.

Eu prometi para sua mãe que não ia discutir contigo, mas tem algumas coisas que eu preciso dizer.

Antes de você tirar conclusões precipitadas, não é o que parece.

Soliane tinha me visitado no dia anterior, mas a confusão aparente é justificável. Uma coisa leva a outra, muita esfiha, muita risada, ela lisonjeada com a homenagem feita no conto. Àquela altura da noite, eu acho que ela disse bem assim, ou não, essa poderia ter sido eu uns anos atrás, super me vejo em uma situação dessas, presa em uma mulher branca, enfiada em um amor egoísta. Mas eu não vou dar esse gosto a Lídia. 

Eu não estou com ciúmes, isso não me pertence, só que por tudo o que a gente viveu, eu poderia ter um pouco mais de respeito da sua parte. Você sabe que me magoa te ver nesse estado. Não é pedir muito te ver inteiramente sóbrio e eu sei que você consegue. Digo isso numa boa, você já é adulto e tem um baita potencial quando levanta a bunda do sofá.

Aonde você quer chegar com esse diálogo, com aquele beijo na boca. Acho que a gente tá voltando a confundir as coisas. 

É como se, entre algumas dimensões confusas, eu tentasse conversar com a sombra da minha mãe. Logo, ela retorna matrona ao garotão:

Eu só vim te ver depois de toda a reação da internet. Achei que você precisava de um pouco de carinho depois do que aconteceu. Você ter viralizado e tudo.

As palavras dela abrem um diagrama por trás de sua cabeça, a fala diverge o espaço em um plátano furtacor. Eu não sei o que é um plátano. Sinto como se eu precisasse pedir desculpas ao mundo e ao mesmo tempo necessito que ele me aplauda.

Não me importo muito com esse lance de cancelamento, porque no fim a galera não sabe nada de literatura. Não me atinge. Simplesmente não me atinge.

Tomo a taça que ela usa como prova do crime e tento apagar a marca com o sabão. Esfrego, esfrego e apesar de limpa, continuo. Tenho uma vaga impressão de que desejo e muito quebrá-la. 

Pela pia jorra sangue que vai descendo ralo abaixo, tingindo a casa a palma da minha mão vermelha e magoada que ela não entendeu que sim, apesar de tudo, esses dedos se esforçaram um bocado para colocar a arte no mundo e, mesmo que pífia, tenho boas razões para acreditar que o fascismo encontra ecos na postura das personagens colocados.

Lídia olha para o sangue, olha minha mão, e, com um pano de prato fica ali fazendo pressão para estancar o sangramento.

A distância refaz o sonho.


Da redação: este é o terceiro de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. Durante as próximas oito semanas, a Aboio publicará os capítulos seguintes, na melhor tradição do folhetim, toda sexta-feira, às 19h.

As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.

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